Sunday, January 2, 2011

Primeiro de Janeiro

"Querido, vou pôr o despertador para as oito. Se não me levantar e voltar a adormecer, acorda-me tu, sim?". Ele disse um "sim" distraído, mas logo a seguir reagiu: "Oito? Amanhã? O que é que tu vais fazer tão cedo?". Calma e decidida, ela respondeu: "Vou começar a minha vida nova".

Sunday, November 7, 2010

Injustiça

"Mas foi o meu primeiro dia de trabalho!Não é justo!" - disse ela. O manager dos Recursos Humanos olhou para o écran do computador e respondeu: "Não posso fazer nada, lamento". Alzira saiu do gabinete, foi ao vestiário e tirou o avental. Depois abriu o caçifo, pegou no casaco e nos sapatos de andar na rua. Sentia-se revoltada, apetecia-lhe berrar com alguém. Não se despede uma pessoa ao fim do primeiro dia de trabalho!..."Não está certo Não se faz! O que é que eles têm contra mim?" - pensou. Depois teve uma suspeita: teria sido por causa do micro ondas?... Mas não era culpa dela que aquilo tivesse explodido! Já no último emprego o raio do coiso pegou fogo! Os aparelhos é que não prestam, isso sim!
Alzira suspirou e caminhou para a paragem do autocarro.

Friday, August 20, 2010

Direito à opinião

Mexeu-se na cadeira, como se não estivesse bem sentado, tenso e continuou a ler: "... para os troll como tu, que infestam isto, não vale a pena explicar nada, és demasiado bronco primata para conseguires ver uma sombra sequer do que se passa, espero que apodreças durante séculos antes de explodires nos confins do universo com os vermes a comerem os restos que ainda sobrarem". Ele ficou parado a olhar para a parede, sobrancelhas carregadas, lábios cerrados. Sentia-se mal, o coração apertado. Por que é que o odiavam assim? Só tinha comentado que o vídeo do passarinho, no youtube, era foleiro. E era.

Amor a sério

De mãos dadas, caminhavam depressa pela rua movimentada. "Viste!?..." perguntou Carlos. Ana acenou com a cabeça. "Julgo que não... O que foi?". Ele parecia entusiasmado. "Incrível!... Aquele casal novo... Ele levava o bébé nos braços,ao colo... não podia usar as mãos, percebes? E ela então pôs a mão no nariz dele ,tirou qualquer coisa e depois limpou a mão na roupa dela!" Ana encolheu-se, fez uma careta de nojo. "Que horror!"- exclamou. E Carlos disse pensativo:"Acho que é amor a sério..."

Sunday, August 1, 2010

A culpa é sua

A senhora Isaura tinha ido à rua e chegou desanimada. Primeiro, uma consulta com o médico de família, depois, uma ida à Segurança Social. As notícias não eram boas em lado nenhum. "Não pode!", "Tem de...", "Veja lá isso!" "Não faça", "Não pode ser" - tinha ouvido isto o dia todo. "Coma mais e mexa-se menos..." não, ao contrário, o médico tinha dito ao contrário... mas ele mandou comer mais hortaliças... já não tinha a certeza. Na Segurança Social, a senhora disse outra vez que sem o papel do patrão não lhe podia pagar a pensão do marido. Mas ela não conhecia o patrão, o marido já tinha morrido, só sabia que era lá para os lados das fábricas...
A senhora Isaura, sentada à mesa da cozinha, olhou pela janela, para o prédio em frente. Estava a tudo a correr mal. E a culpa era dela, não era?

Saturday, July 17, 2010

Solidão

Magra, cabelo curto, rugas de anos duros, não parecia uma mulher. Pousou as duas garrafas de vinho para pagar: "São 7 euros e 20". Ela contou as moedas que trazia na mão, contou-as outra vez e disse à menina da caixa: "Julguei que era menos ... afinal, levo só uma." E olhou para trás, com um meio sorriso: "Deve ter subido o preço". Ninguém respondeu. As pessoas atrás, na fila, olhavam para os lados.

Coisas de mulher

Sentia-se bonita, radiante e radiosa, num daqueles dias em que a vida é boa ! Não sabia explicar o verdadeiro motivo desta felicidade: coisas de mulher! Viu os olhares fixos de algumas fêmeas em si (inveja?), sentiu olhares demorados de muitos homens ... Sorria para si mesma. Quando chegou a casa, abriu a porta e a irmã disse-lhe: "Sabes que tens o fecho das calças aberto?" Não sabia.

Friday, June 18, 2010

Apaixonado

O comboio ia cheio, caras pesadas, de segunda-feira,o céu cinzento. Um telemóvel tocou. O homem de cara séria e cabelos grisalhos atendeu: "Estou quase a chegar. Depois vou p'ra casa. Mas,claro que sim... pode ser, sim... à porta, então! Até já!". Desligou e a carruagem voltou ao silêncio. Até que o vizinho da frente resmungou: "Ó pá, desliga a luz do sorriso que estás a gastar energia!"

Ele sabe

O psiquiatra pôs-lhe no ombro: "Você vai ficar bem, garanto! O pior,sabe, são aqueles que fazem de conta que estão bem ... e não estão! Olhe que eu sei quando se passa alguma coisa! Podem até disfarçar, mas, eu, sei. Comigo não conseguem esconder! Apanho-os sempre" - disse, a rir. Depois estendeu a mão: "Bem ,meu amigo, então até à próxima consulta! Vá descansado. Agora desculpe de não o acompanhar até à saída, mas eu nunca passo por essa porta! Sabe, é cá uma coisa... saio sempre pela outra porta, por trás. Sempre. Boa tarde, então!"

Friday, May 28, 2010

A cadeira

O Antunes não era feliz. Tinha sempre ar de vítima, muito cinzento, queixava-se como se o mundo inteiro conspirasse para o incomodar. Um dia queixou-se da cadeira dele: velha, dura e rangia. Mas o patrão não lhe ia dar outra, certamente. "Só para me arreliar, carago!". Um dia, o Antunes caiu da cadeira e bateu com a cabeça no chão. Nunca mais foi o mesmo: até morrer, no hospício, insistia que a cadeira se tinha rido dele.

Thursday, May 13, 2010

O senhor doutor

"O doutor desculpe mas...eu sou o novo vizinho, pois já sabe... desculpe lá, mas por acaso viu o meu gato? pois, aqui há muitos, o meu é um pretinho. Não o vejo desde manhã e o vizinho dali disse-me para ter cuidado, que há gente aqui que não gosta de gatos...o senhor doutor não se importa de me avisar se o vir?...muito agradecido!"... O doutor Alves fechou a porta. Não gostava de vizinhos. De gatos, sim. Empalhados.

Sunday, May 2, 2010

Dia de mãe

Amélia consumia-se: tantas peúgas sem par! A máquina come peúgas, brincava. Mas a verdade era dura: horas a juntar peúgas, a lavá-las, a fazer pares... e nunca ganhava a guerra! Não sabia mais que fazer! Nesse domingo, só em casa, revirou tudo a procurar peúgas. As que não tivessem par... lixo! Ninguém sabe como foi mas Amélia apareceu morta, na cozinha.
Tinha uma peúga entalada na garganta.

Os investigadores

"Estranhíssimo! Buzinaram e puseram-se a fazer sinal para eu abrir a janela. Um carro velho, piroso, os gajos, de bigode, muito mau aspecto!Mandaram-me parar ali... fiquei cheia de medo! Então deram-me a tampa do pneu! Tinha saído, eu não tinha visto... Agradeci, disse que não era importante. Resposta: não é importante mas custa dinheiro, ah, pois é! E pronto!!!" O marido riu-se:"Eram da PJ".

Thursday, April 22, 2010

Optimismo

"Agora, estou bem! Um cantinho só para mim. Acabaram-se multidões, partilhas, regras, ter que aturar isto e aquilo. Já devia ter feito isto há mais tempo:o meu canto, só meu!”. -Mãee, tá aqui uma barata!
-Barata?Onde?
-Aquiiii,no canto!
Lídia levantou-se do sofá e dirigiu-se à cozinha, apressada,de sapato na mão.

Sunday, April 18, 2010

A história

Nelo suspirou, às voltas na sala. Tentava escrever a história há meses e não conseguia começar. Queria a história perfeita: concisa, certeira. Apenas o essencial, sem desvios nem rodeios... Ah, as musas não estavam com ele! Ai, desespero! Sim, a história concentrada, não eau de toilette mas sim parfum, obra de mestre... De repente, viu a luz! Sentou-se à secretária e escreveu:"Fim".

Thursday, April 15, 2010

Avarias

Sentei-me à espera do comboio, pousei a muleta a estiquei o pé engessado. Ao meu lado um jovem, olhos em viés, falou comigo. Não percebi nada, disse-lhe, ele repetiu.Finalmente entendi: "eu, doença, doença, down..." e apontou para a cabeça. Eu respondi com um "ah..pois..." baralhada e olhei para o chão. E então entendi...! "Pois é! Temos os dois uma avaria: eu no pé, tu na cabeça!". E fiz-lhe um sorriso solidário.

O afetuoso

Ele implorava, chorava:"Adoro crianças!Eu era incapaz de fazer mal a uma criança!". Por fim desistiram, deixaram-no só. Então ele disse-lhe docemente:"Tu sabes que gosto muito de ti, não sabes?" Ela fez que sim com a cabeça, devagar, a olhar para o chão. Ele pegou na mãozinha da menina e disse:"Pronto, vamos brincar no meu quarto".